A volta dos que não foram

Nos EUA ou Somália...
Luis Felipe Miguel 

Durante certo tempo, alimentei a ideia de escrever um artigo sobre teoria da democracia e intitulá-lo "a volta dos que não foram". Afinal, a democracia é uma contradição em termos. É o governo do povo, mas "povo" é a categoria que designa aqueles que não governam, pois são governados. "Povo" é como se fosse o antônimo de "governo". A democracia é a volta dos que não foram.

Boa parte das disputas em relação ao conceito de democracia, creio eu, gira em torno disso. Há quem entenda que essa contradição nos obriga a reduzir drasticamente nossas expectativas em relação ao regime democrático. Como governo do povo é uma contradição e uma impossibilidade, vamos nos limitar a uma autorização eventual, meio ritualística, sem contar com demasiado esclarecimento ou capacidade de interlocução por parte dos governados.

Ou podemos seguir o caminho oposto e tentar desafiar a passividade política dos governados, ampliar a sua capacidade de ação efetiva, fazer a democracia chegar mais perto de seu ideal original, que é a igualdade política e a autonomia coletiva. Tentar superar a contradição, em vez de nos adaptarmos a ela.

A história das democracias liberais é, em grande medida, a história de como se procurou evitar que esse segundo caminho fosse trilhado. A inclusão de (quase) todos na cidadania política foi obtida, após muita luta da classe trabalhadora, das mulheres, das chamadas minorias raciais. Mas a participação é limitada e a educação política é desincentivada. O campo político, tão suscetível às pressões dos poderosos, cria maneiras de se fechar às demandas que vêm de baixo.

A democracia é apenas tolerada pelas classes dominantes. Quando funciona do jeito que desejam, serve de mecanismo de apaziguamento do conflito e contribui para a manutenção da dominação. Mas sempre há o risco de que a promessa de igualdade política seja levada a sério e voltada contra os dominantes. Nesse caso, eles não hesitam em descartar a democracia e retornar a formas indisfarçadamente autoritárias de governo.

No Brasil, os avanços sociais dos governo petistas, mesmo que tão moderados e contidos, já foram vistos como excessivos. O golpe de maio/agosto deste ano foi a resposta. De lá para cá, o novo regime aprofundou seus traços autoritários; não por acaso, concomitantemente à implantação de políticas com marcado viés antipovo. O retorno da democracia - que não é só o retorno de governantes eleitos pelo voto popular, mas o retorno do conjunto de garantias legais que estão sendo suspensas, na lei ou na prática - não virá por concessão dos dominantes. Depende de uma ampla pressão popular que ainda está por ser organizada.

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